quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fotografia


P
assou a noite em claro, e foi, com a Dona do Céu, que dividiu suas preocupações.

Atordoado com a situação, engolia as pílulas juntamente com os passos do ponteiro e esperanças quase mortas, como ele.

O futuro escorreu-esvaiu areia e se perdeu com a tempestade.A dor vinha mesmo do presente. Sentia-se apodrecendo- Era a alma, sim, a alma! Apodrecia sem qualquer redenção.Diferente do infeliz, as pílulas alcançavam o triunfo.

Sentia-se fera sedada e o animal, agora indefeso, admitia derrota e caminhava tremulamente ao leito improvisado.E foi ali, no velho tapete do corredor que os membros cederam e o corpo foi derramado ao chão.
O peso dos pecados era quase imperceptível  e concebeu o som oco, abafado...Som esse que não tornou possível o socorro.
O animal suava frio. E as batidas do coração quase morto-descompassavam.

A cabeça girava ao redor de todos os porta-retratos vazios que ocupavam a parede. Havia na realidade apenas uma foto preenchendo o cenário fúnebre.
Estava com seu pai. Ao fundo havia rosas vermelhas, milhares delas.
Apesar de todo o calor brotado de cada pétala carnuda, os sorrisos eram frios, como numa tentativa erroneamente calculada de compor o cenário. E era disso que viviam: mascarar buracos. Esses buracos d'alma.

O sorriso sisudo do pai, pai esse que já havia morrido para o animal desde sua infância, talhou-se como lembrança ardilosa.
Aquele sorriso havia penetrado. Sim! Penetrado o íntimo da carne; havia destroçado os olhos de pureza infantil.

Desde então, da lembrança negra, a fera se alimentava de rastros. Num delírio convulsivo, tentava jogar os pedaços do corpo para alcançar a fotografia.
'Acalme-se. Estou aqui com você...'
-Coloquei a fotografia próxima a seu quadril. Acredito que ele recolhera toda devassidão daquele dia para dentro de si e uivou pela última vez.
Logo entendi seu recado...
Um pedido que apenas lágrimas de infância roubada poderiam fazer...
Quebrei o vidro do porta-retrato e, gentilmente, deixei um pedaço suficiente em suas mãos.

A fraqueza vinda do cansaço de vida morta e das dezenas de pílulas deixaram apenas um leve risco sobre a garganta.
Minha mão estava agora sobre sua pata, e, juntos, desenhamos o corte: era o sorriso do pai na garganta.

Do sorriso brotava sangue e sua cor lembrava as rosas da fotografia... 

Um comentário:

  1. Não sei te dizer exatamente o porque, mas esse texto mexeu comigo... mexeu em lembranças que achei já ter esquecido, lembrei de dores antigas que me tiravam o sono, mas hoje são apenas lembranças que serão novamente esquecidas^^

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