segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Acontece é que a vida andava bem mais ou menos.

No começo era até muito bom, mas agora o "nem muito e nem muito pouco" incomodava. E talvez esse incômodo advinha do último fôlego dado antes de ter cedido à suas próprias promessas.




Ela o esperava do outro extremo da rua. Rua estreita, escura. O excesso de árvores enfileiradas nas duas calçadas permitia escutarem tudo: do silêncio aos roncos de duas almas.
Sabiam que deixar a alma dormitar era arriscado demais, mas naquele momento não havia outra alternativa a não ser esperar.
Entreolhavam e entristeciam-se.
Pareciam duas estátuas dispostas frente a frente. Mas alí, dentro daquela redoma situacional,havia lembranças demasiadamente lapidadas- a ponto de terem perdido a condição humana.


(continua...)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Tenho espasmos de qualquer coisa.
Vontades súbitas de para-quedas, mas o que faço é por menos açúcar no café.
E eu levanto a cabeça - o nariz enxuto fica com o cheiro dos pedaços de canela colocados minutos antes de dormir debaixo do travesseiro.
Minhas coragens quaisquer não são e soam como coragens verdadeiras e as variações sempre ficam pra depois.
E eu me pergunto: pra quê tanta vírgula? E a resposta vem sempre contraditória. "E o que tem de mau?"
Me pergunto como seria não ser eu.
E se não me fosse, sentiria o peso de ser outro?
Sentiria o peso d'alma de outrem?
Teria eu-outro o cheiro de canela desenhado no cabelo?

E eu levanto o cabeça.

Deixo, sem sucesso, o pensar sentado na mesa da cozinha, na xícara de café que lavei, no rosto mal lavado e corro pro mundo para viver uma ou três doses de para-quedas fajutos.

E o que tem de mal?

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fotografia


P
assou a noite em claro, e foi, com a Dona do Céu, que dividiu suas preocupações.

Atordoado com a situação, engolia as pílulas juntamente com os passos do ponteiro e esperanças quase mortas, como ele.

O futuro escorreu-esvaiu areia e se perdeu com a tempestade.A dor vinha mesmo do presente. Sentia-se apodrecendo- Era a alma, sim, a alma! Apodrecia sem qualquer redenção.Diferente do infeliz, as pílulas alcançavam o triunfo.

Sentia-se fera sedada e o animal, agora indefeso, admitia derrota e caminhava tremulamente ao leito improvisado.E foi ali, no velho tapete do corredor que os membros cederam e o corpo foi derramado ao chão.
O peso dos pecados era quase imperceptível  e concebeu o som oco, abafado...Som esse que não tornou possível o socorro.
O animal suava frio. E as batidas do coração quase morto-descompassavam.

A cabeça girava ao redor de todos os porta-retratos vazios que ocupavam a parede. Havia na realidade apenas uma foto preenchendo o cenário fúnebre.
Estava com seu pai. Ao fundo havia rosas vermelhas, milhares delas.
Apesar de todo o calor brotado de cada pétala carnuda, os sorrisos eram frios, como numa tentativa erroneamente calculada de compor o cenário. E era disso que viviam: mascarar buracos. Esses buracos d'alma.

O sorriso sisudo do pai, pai esse que já havia morrido para o animal desde sua infância, talhou-se como lembrança ardilosa.
Aquele sorriso havia penetrado. Sim! Penetrado o íntimo da carne; havia destroçado os olhos de pureza infantil.

Desde então, da lembrança negra, a fera se alimentava de rastros. Num delírio convulsivo, tentava jogar os pedaços do corpo para alcançar a fotografia.
'Acalme-se. Estou aqui com você...'
-Coloquei a fotografia próxima a seu quadril. Acredito que ele recolhera toda devassidão daquele dia para dentro de si e uivou pela última vez.
Logo entendi seu recado...
Um pedido que apenas lágrimas de infância roubada poderiam fazer...
Quebrei o vidro do porta-retrato e, gentilmente, deixei um pedaço suficiente em suas mãos.

A fraqueza vinda do cansaço de vida morta e das dezenas de pílulas deixaram apenas um leve risco sobre a garganta.
Minha mão estava agora sobre sua pata, e, juntos, desenhamos o corte: era o sorriso do pai na garganta.

Do sorriso brotava sangue e sua cor lembrava as rosas da fotografia... 

domingo, 23 de setembro de 2012

Pequenos e grandes pecados



Tenho que admitir: sou pecadora

Não me refiro aos pecados cravados em bíblias ou corpos encolhidos devido as cicatrizes de cilícios. Me refiro ao pecado em cerne, aquele que só após permanecer em silêncios longos somos capazes de perceber que existem e criaram raízes, ali mesmo, dentro de nós.


Eu vi a raiz timidamente roçar meu calcanhar e sorri pra ela. Achei que com o tempo ela entenderia que eu não poderia acompanhar e cuidar de seu crescimento. Achei que ela seguiria por si só e eu poderia somente observar por um ou dois instantes quaisquer.
Eu gosto desse meu jeito. O pecado de certa forma torna-me ainda mais humano e o fato de cometê-lo faz-me sentir violentamente viva.
E essa vivacidade toda me deixou um pouco cansada, de modo que tive que deixar todos os  orgulhos e monstros aquietados de lado e deitar na cama para chorar. E com o choro admiti para mim que tinha medo.
Medo desta violência toda de sensações, destas acomodações. Medo de saber sim que poderia ser alguém melhor e simplesmente não colocar o benefício em prática. Tinha medo de alguns monstros que se desenhavam dentro da minha cabeça ( e eu sabia-Sabia sim que todos tinham a minha face).

Me perdoe pelo que te fiz. Tentarei ser alguém melhor.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Guia de sobrevivência


Eu te disse mais de mil e três vezes: da carne tiro o que bem entender! Esse seu gosto incompreensível em delimitar o destino do sangue, do Meu sangue, já me rendeu bons goles de estafo!
Já a minha lassidão é compreensível! Veja bem, aquele número de telefone deveria ser usado em situações emergenciais! Uma emergência não é um acaso qualquer, uma situação de calçada que qualquer par de conversas pode resolver.
Ora, e agora, o que fazer?! Já disse pra não me envolver em suas folias... Dessa vez eu não me meto! Dessa vez o sangue vai sim pra onde eu bem entender! E você?! Ora, você vai arranjar um jeito de esquecer aquele telefonema- de resto, não sei. Se vira!
Mas que droga! Diz-me porque não consigo fazer surgir três ou oito passos pra longe dessa carniça que você apadrinhou? E toda essa caturrice
 que você transpira e se tornou vai nos adiantar de quê?! Com tanta folia negra não nos restará nem uma morte saudosista...

Você e essa mania de abiscoitar tudo! Isso te levou pro fundo do poço! Agora eu e você somos o seu lodo! Não...Não é possível! Tô me envolvendo nessa momice tua!!! Pela milésima  quarta vez: agora eu me abstenho disso tudo!
O lodo e o triunfo (seja o último o que for) são inteiramente seus. Cá entre nós, que esse melindre natural que Deus e a olência que está entre as coxas da tua mãe lhe deram seja teu guia de sobrevivência.

E o papelzinho que tem o número escrito você me devolva! 
Ai... Que vontade de entorpecer a cabeça toda e sentir que nada disso tá acontecendo...Mas que parvoíce cagada, hein?!
E me diz, o que vai fazer com a ciranda? 
Sim, porque têm fitas rompidas, desaparecidas, sequestradas... Os donos tão por aí procurando, não estão? Eu bem sei que não são tuas! Malandragem, é isso o que faz!
Tua alma tá suja de lodo. Teus olhos já não têm aquele brilho que conheci na nossa infância.
Tua música barulhenta incomoda, não percebe?
Olha, eu te amei sim! Minha lassidão e seu gosto na minha boca não me deixam mentir e dizer (nem a mim) que passou.
Mas a folia e a carniça também são tuas.

O guia de sobrevivência vai dar o seu jeito.



Eu vou embora porque o problema é seu!

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Que voe

A porta do quarto estava quase fechada e quase aberta.
"Tire os meus olhos daqui!" Dizia às palavras quase ilegíveis do papel liberto de um caderno qualquer. A culpa, quieta, foi embora.
 Pra falar a verdade, tinha raiva de sentir aquilo-nem era bonito. Nem era digno, mas não era culpa.
 Era indigno verificar se as madeiras da ponte ainda se encontravam podres. Como se mágica fosse resolver a podridão das coisas...
A culpa foi embora porque era vida que sorria por atenção.
Foi quieta porque sabia que o sentimento era tentador, e o pecado era deixar de ser aquilo que almejava.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Tudo é viagem.

Finalmente o ácido atravessou o intestino sem deixar buraco algum. Como?! Nem eu sei! Talvez desamor demais enquanto a época de amor era ditadura. Acho que ela gostava assim: desamor com o toque adocicado de promessas infundadas. Um desamor no desalento.
Deixei o álcool entrar. Da última vez que ele escorreu a garganta foi o seu nome que ganhou o tom. Mas dessa vez o que saiu foi vida, foi dança, foi "Dane-se. Vou ser feliz". E o que vi e ouvi nem doeu. Na realidade foi bonito! Bonito porque já era hora de rumar e os passos foram uma dança cadente da qual pedi três desejos:
Eu, você e o resto do mundo bem.
Se você está bem: boa sorte, boa vida! Vá sim ser feliz!
Agora o meu nariz (e que nariz!) tem que ser mais cuidado! Foi bom ver, foi bom sentir que aquela luta se esvaiu torneira e sangue. O que havia, houve! O que era pra ser entendido, foi sentido! E "fique bem ficando" passou cruel mas agora é lei. Que fiquemos-todos!
Estou feliz com uma morte que não houve. Com aquelas flores amarelas que já celebravam morte desde então. 
Estou feliz porque descobri que não morri! Meu Deus e narratário, jurava que era morte e não, não era! 
Que fiquemos todos por aí, celebrando!

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Madrugada

Tinha de admitir que sentia medo. Era difícil explicar fosse para quem fosse que sentia um medo angustiante por algo velho que no momento se fazia novo. Engraçado porque ao se despedir de seu pai, ouviu: "Vai fazer seu caminho. Não se preocupe com os outros.'' Era sim uma fala impressionante. Era um convite de liberdade desmedida que a assustava.
 Como poderia dizer que aquilo deixara sua habitualidade e comodidade já reservada e quente por algo incerto a desconsertava de acordo com o princípio ser e estar? Seu pai havia lhe sugerido a idéia de um cheque em branco e ela sentia medo do excesso ou desuso.
 Era grande o poder nas mãos do aprendiz- poder esse que poderia ter efeito corrosivo matando de dentro para fora enquanto a vítima tentasse degustar vida- a vida que ainda desconhecia: de fora para dentro. 
Agora pensava se as pessoas que tanto estimava sabiam que não vivia de fora para dentro. Saberiam elas que sentia uma necessidade emergencial, silenciosamente gritante de viver a largos goles a vida externa? Sentia a garganta seca de seu Deserto...
Quem sabe seu pai havia lhe dado aquele presente colossal e incalculado pra sanar a sua sede de viver. Seria doloroso pensar que foram palavras sem demais intenções que só possuíam a função de preencher despedidas. Pedia a sua intenção de Deus que esse não fosse o motivo.
Diferente das outras vezes, leu A paixão segundo G.H. do começou. Sentia como se pudesse corresponder o solicitado da autora logo no prefácio da obra: sentia a alma demasiadamente formada... E não se importava se o rótulo fosse pretensioso e impreciso. Talvez era isso que Clarice buscava: alguém que desistisse do contorno da compreensão.
O que queria dizer é que leu e via claramente que a terceira perna havia desaparecido e agora poderia correr.
Tinha sim de admitir que sentia medo, e muito. 
Era doloroso olhar perplexa diante do convite em branco da felicidade. Para ser sincera, já sabia do poder antes de qualquer despedida.
O medo culminava, mas ainda assim entrou no ônibus...

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Espasmo divino

Queria fumar.

Mas não podia. Uma mão segurava o pincel e a outra se ocupava com a paleta. O estúdio se limitava a luz da janela semicerrada e as pequenas transparências quadradas do branco da cortina xadrez. Não devia.
Um traçado negro, fino e indolente- começou assim. Sorria amarelo com os descuidos. Sentia, dentro de si, um gozo incontrolável que destravava o punho e raspava com força as cores no tecido.
Vivia a raiva e ela uivava sobre cada extremidade do corpo que flamejava por si só. O traçado era contorcido 
Sua mente estava entorpecida. O desvario levava a dançar pelos cantos do cômodo. Era como se conversasse com Deus e descobrisse que há plano nenhum, e que Mestre, por fim, fosse ilusão no instante que chamamos de vida e na entrelinhas oníricas da morte. Decidira portanto pintar a face de Deus no tecido manchado. E que audácia! 
Acendeu o cigarro.
Sentia Deus transbordando de si, das tintas, da taça de vinho, do pincel. Os emaranhados da fumaça do cigarro giravam sua cabeça e formavam a mensagem. Soube então que a qualquer segundo desfrutaria o prazer divino!
O segundo se dividira em tintas e no suor noturno que já umedecia a cortina. Era Deus, num corpo de mulher casta, sobressaindo da tela. O vinho jogado formava o cabelo ruivo e a carne dos lábios. Os olhos ditavam pecado, assim como seu andar que levava o Mestre ao encontro do Mecenas.
Tomou o cigarro de sua mão, tirou-lhe a paleta. Baforava as tragadas no rosto da criação. Sentia que a vida era sugada do corpo-embalagem. Sentia-se roto, enfim.
Por exato sabia o que fazer.

Estava prestes a matar o Criador.

domingo, 12 de agosto de 2012

Aniversário

Acordou, colocou a mão sobre o peito e percebeu que o coração batia assim como os segundos do relógio que estava sobre o criado mudo. Alegrou-se porque as batidas eram ininterruptas, seguiam o padrão sonoro e o padrão tempo.

Já em direção ao banheiro, retomou mentalmente os afazeres do dia. Um pouco de si aqui, outro tanto lá, metade de si num canto e nada para algo “extremamente importante”. Achava um saco se dividir por aí quando o que queria mesmo era pegar a bicicleta e pedalar até a cidade mais próxima.

Hoje era dia de seu aniversário e seu próprio presente era usar uma camisa que comprara no dia anterior...Ria de si sarcasticamente. Sentou para tomar café. Dia ensolarado. No jornal via que era dia para usar azul. Olhou para a camisa e viu a cor que chamava de “café” agindo como antítese do bom destino.

“E se” persistisse com a camisa cor de café?! Não encontraria A grande paixão enquanto empurrava o carrinho do supermercado ou a caminho da lotérica quando fosse pagar a conta de energia já atrasada? E se tropeçasse ao atravessar a faixa enquanto fosse em direção ao trabalho? E se acontecesse qualquer coisa que pudesse fazê-la sentir como se quisesse sumir do planeta?! Eram tantos “e se’s” que logo cansou e resolveu admitir para si que olharia mais o céu azul nesse dia. Teve medo e então colocou uma fita da mesma cor do céu no cabelo. Foi, dividida, para o trabalho.

No meio do percurso tropeçou numa pedra qualquer. Esbravejou “Tá vendo?!” – o punho erguido. Sua face estava rosada porque percebeu que “todo mundo” presenciou seu drama diurno. E seu todo mundo era uma senhora que varria a calçada como quem poderia passar o restante da vida naquele mesmo lugar (e que mal percebera a cena da mulher que usava uma fita azul no cabelo) e um cachorro travesso que brincava com uma borboleta morta.

“Uma borboleta morta?!” O dia não começou bem...


Resolveu chamar um taxi.

O resto do trajeto até o trabalho também não foi tranquilo. Pela janela do carro observava as casas e o comércio despertando.Tinha fome de grandes acontecimentos para o dia de seu aniversário. Aproximou a cabeça na janela (que estava aberta)...Tudo passava mais depressa, seu coração palpitava rapidamente. Acompanhava, ansiosa, apressada, com um sorriso no rosto  até o momento que....


"Não!!!"- A fita havia partido com o vento. Talvez, ainda, rumado ao cachorro travesso. "Mal sinal, mal sinal...".


O taxista ainda perguntou se ela queria voltar. Aquele senhor tinha um olhar tão bondoso e parecia mesmo disposto a voltar ,e, talvez, nem cobrar esse trajeto em busca da fita... Mas não, não quis voltar...Não queria atrasar para o trabalho e estar sujeita a outro terrível acontecimento... Horóscopo era superstição...Pura superstição barata...


Estava, agora, sujeita a sofrer qualquer ironia, maldade e sem gracisse do destino... Mas resolveu escolher ser mais sisuda. Estava em frente a porta do "paga contas".

Sentou, no lugar reservado para a caixa da floricultura. Seus colegas presentearam uma cesta de geleias e chocolates. Agradeceu, sorriu honestamente, mas, por detrás do sorriso ainda se preocupava...Não havia rosas azuis...

O tempo passou e passou... Seu coração voltou a palpitar conforme o tic-tac do relógio de pulso ditava. Foi pagar as contas e não tropeçou. Foi ao supermercado e não deparou com alguém que também procurasse por uma lasanha congelada e com tímidos risos iniciasse uma conversa corriqueira (e necessária) sobre passar o fim de semana em casa comendo lasanha e assistindo uma comédia romântica qualquer. Nada...


Pensava: "Bom, ao menos nenhuma grande tragédia aconteceu..."


Foi dormir. No dia seguinte não iria trabalhar e decidiu não ativar o despertador...Estava cansada. Jogou a temida e então amarrotada camisa cor de café na poltrona bege que ficava no quarto. Adormeceu rapidamente.


Acordou no dia seguinte com o som da campainha. Assustada e sonolenta, era assim que se sentia... Foi atender a porta. 

Usava uma camisa branca, como leite. Devia ter aproximadamente sua idade (e o que isso importava?!). Trazia consigo uma fita azul. Era sobrinho do velho taxista...


Estarrecida! Com um largo sorriso no rosto. O convidou para tomar café. 

Pediu para abrir o pote de geléia... 
Seu coração disparava: reparou que os olhos do rapaz eram azuis...

 -Azuis!!!

E ele ouviu e a olhou, sem entender. Sorriu...






PS: Para minha irmã Jacqueline, a tartaruga...






terça-feira, 7 de agosto de 2012

(À)Aqueles dias Vintage





Acordou com a janela escancarada e um dia ensolarado. Não queria sair da cama. O calor invadia o quarto, invadia os sonhos, que ainda, sonolentos, se despediam- Também acordava a pele enquanto os olhos se abriam lentamente.


Nesse instante tocava Tears for fears e a música se misturava com a preguiça de quem recém-desperta. A mistura de calor matutino, música dos anos 80- e olhos, agora, semicerrados, pediam regresso dos sonhos e embebiam os segundos de preguiça e uma tranquilidade infantil. Sentia que era o começo de um bom dia... Podia estar enganada, mas tudo aquilo valia um engano qualquer!

A janela era convidativa, além disso, possuía um peitoril grande o suficiente para bem acomodar-se diante de uma tela natural. O notebook também sentava, no colo, e sonorizava quinze ou trinta músicas francesas. Observava a paisagem distante... Ainda mais distante porque estava sem óculos e o que nasceu ao longe foi um Monet impressionista e impressionado com uma percepção tão boba de casas e ruas, de montanhas e céu.

E os grandes passeavam sobre seus pensamentos. Monet dava lugar aos bustos de Modigliani. Imaginava como seria seu rosto “Modiglianinado” ou como seria seu futuro apartamento com a sala decorada com uma reprodução de Egon Schiele (um de seus favoritos!). Havia criado um trava-línguas de uma palavra só! Se sentia boba e ótima!
Pois então, “A dança” de Matisse era ciranda composta por Alfredo Róldan e a presença de suas mulheres, cores e luas de Chagall sob um céu de Kandinsky e com maçãs e cebolas de Cézanne espalhadas ao chão. A música surgia do violão de Juan Gris... Imaginem só!

“Pagu” desfez os nós da garganta. Como era uma diversão pueril, logo lembrou da música, que passou a substituir as francesas. Ouvia a música (que já sabia de cor), atenta. 
Desejava dias de pincéis, batom, problemas na França e ser mais dona de seu nariz- Um à la Zazá- Parecia gostoso- arriscado! 

Riu, disse um palavrão qualquer pra sentir-se Vintage. 
               Era a primeira vez que um “Porra louca” tinha tão forte e cômico efeito! 


(Modigliani se revirando na cova!)





Sibilava:


Ratatá! Ratatá! Ratatá!
Taratá! Taratá!... 


E esse era mais um dia Vintage...

domingo, 29 de julho de 2012

"It would be wonderful to say you regretted it. It would be easy. But what does it mean? What does it mean to regret when you have no choice? It's what you can bear. There it is. No one's going to forgive me. It was death. I chose life"- Laura Brown


O sentimento que fica é a vivência cotidiana de duas mulheres em si.

A realidade exterior e a realidade interior. O conflito do eu. A pausa em frente à carta inacabada, o café já morno e a mente sem palavras. As duas linhas preenchidas não tiram o poder destrutivo do vazio que se segue e da cor branca dominante sobre o papel.
O som da TV ecoa esse vazio sem nome. Era uma situação perplexa, estar tão cheio e vazio de si. Um sentimento aterrador duas vidas dentro de uma. A comunicação de duas almas que totalizam uma dá-se por silêncio e gritos, lágrimas e um riso descontrolado. Não se tem o contorno do sorriso.
Aquele branco incomodava os olhos. Rasgou o papel em pequenos pedaços e jogou na xícara cheia de café. Dava para enxergar no reflexo dos olhos a tinta que compôs as poucas palavras e que foi se desfazendo insossa no líquido escuro. Acompanhava o processo quase ritualístico com um cigarro entre os dedos.
“Insosso”. A palavra não saía de sua mente (ao menos, agora, surgia alguma palavra para enxotar em vão aquele vazio).
 Insossa era sua percepção de vida naquele instante, e, parecia que as duas linhas da carta já morta eram compostas por essa palavra tão devastadora e quase que ao mesmo tempo, tão consoladora.
O que surgiu foi a ideia de desentender a vida. Cansava-se das projeções psicanalíticas sobre o inanimado, pois, era isso o que eram... Sentia que evitavam a vida vivendo como o esperado. 
E exatamente por isso, o cigarro era mais consolador, ele, consigo, era o não-gente que além de viver, sentia-se. A fumaça dominava o aposento e o cheiro seco em seu cabelo e roupas cessavam a podridão de duas almas.
Diante disso, o contorno, irônico, montou sob e sobre rosto. O rosto foi envelhecido pelas horas e promessas infundadas. Ele, o contorno, aceitava passivamente o cigarro, como um hospedeiro se alegrando falsamente com a companhia do parasita. As rugas culminavam como raízes. Fendas se construíam, e agora lia a última palavra que restou num fragmento do papel destronado: insosso.

Pois era realmente o que havia escrito.

A última tragada era em homenagem ao não viver.

quarta-feira, 25 de julho de 2012




Ela não sabia muita coisa do Mandela, o nome da rua dos Beatles e nem do que acontecia na novela das nove ( fora que "das nove" era apenas apelido)... Sentia como se outras coisas fossem mais interessantes. Se perdia num pseudo mundo de passatempos, e assim, caçava músicas do seu gosto na internet, tirava fotos com a cachorra e se angustiava com os questionamentos internos.


Particularmente, estes questionamentos a incomodavam. Pior ainda era quando havia questionamento nenhum e só lhe restava uma angústia advinda da sensação onírica do vazio de si. Um incômodo de dois extremos.
O que lhe interessava eram os mistérios! Como um jogo de tarô feito há mais de três anos! Ou uma conversa mediúnica que lhe dizia tudo o que já sabia e lhe indicava um caminho que sempre postergou. Ela mal sabia no que acreditar... Acreditar em si já era uma tarefa difícil!
A lembrança daquela pessoa roçava a cabeça como um mantra funesto, às avessas. Ela fechava os olhos e se tornava audível um "Xô-xô-xô!", pois tinha problemas maiores, problemas de si...
Na realidade idealizada, tentava enxergar como dragões (os problemas). Isso fazia do dia um pouco mais sustentável, e a vontade de enfrentar, dava a sensação de se tornar um eu aventureiro- Um pouco menos banal sentir-se dessa forma...
Assim, levantava e seguiam: banho, café da manhã, o desejo de escrever uma carta... A reflexão no trajeto do ônibus, uma conversa a toa com alguns amigos, o desejo de fugir um pouco de si e outrora de se resgatar...Era periódico- era maré salgada e doce. Ela era um tanto confusa, outrora, um tanto certa de si- Tinha uma alma bonita!
Seu sorriso nem era tão sincero, mas os olhos jamais mentiam! Eles confessavam que de fato nada sabia de Mandela e nem conhecia tudo daqueles que pediam conhecimento completo- para ela, a maior façanha de si! Se os mistérios agradavam, a curiosidade se alimentava à gotas- Sorria bonito!
Mentir, na verdade, dava-lhe a sensação de sinceridade neonata. Se necessitava mentir, era porque respeitava um sentimento do eu, e dessa maneira, era sincera consigo. Tudo ia bem e mal, e dessa forma, sentia-se viva. 
E ainda queria desconhecer o nome da rua...



(Sentia que devia estudar português)

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Anima e Animus


Intrigada com essa assunção natural e espontânea, sentia um orgulho transparente, algo que possuía a dose certa de razão e emoção. Sem medo algum, meus olhos permaneciam fixos e calmos diante de minha mãe e diziam : sou mulher, acima de qualquer coisa!

Acima de qualquer coisa escolhi ser mulher, e, quando digo mulher, sinto tomar uma consciência exata de algo misterioso, mas que faz todo o sentido porque o mistério há em você e é natural.

Essa transição de menina à mulher foi um tanto quanto abrupta. Era como se meus conflitos tivessem resolvido, juntos, assombrar-me de uma só vez e a situação me oferecesse as seguintes opções: correr ou encará-los.

Quando digo mulher, esse mistério soma a saliva da boca e me faz perguntar: afinal, o que é ser mulher?! Pois é uma coisa que sinto, mas não consigo organizar precisamente em palavras.

Mas a minha tentativa aqui, é fazer exatamente isso, ordenar palavras numa espiral e dividi-las com o momento e com outros olhares e histórias.

Cada um tem sua história, suas fases e processos... Cada um tem seus propósitos e atitudes que os justificam. A lembrança que deixa o gosto na ponta dos lábios e vai embora, se não calculada, machuca... O tempo vai e vem...
E a gente vive disso, experiências e frutos que nascem delas; E num momento certo, procuramos nadar contra a maré pra saber qual será o foco de hoje, o foco que te deixará sentir-se mais livre amanhã.



Eu acordei com minha mãe abrindo a janela.
O frio invadia o quarto, invadia a sensação de dor e a ressonância que se fez foi sombras e culpa, da parte de minha mãe.

O que eu sinto, é que não posso ceder o que sou em prol de um jogo de padrões estabelecidos que na realidade nem existem ou devem existir.
O que sinto, é um nó na garganta, porque um foco se foi para se criarem novos, isso é um tanto sombrio no início, é belo... Isso é vida.
Acredito que ser mulher é permitir os dois lados de si agirem sobre o corpo e alma. A emoção tomar seus olhos, a concisão tomar a garganta, e os dois somarem juntos, seus passos...
E foi assim que respondi a pergunta de minha mãe: 

Sou mulher acima de qualquer coisa.







quinta-feira, 12 de julho de 2012

E assim começa a Ciranda...



E a vida, a vida vivida mesmo, se começa assim: você descobre que sacrifícios têm de ser feitos.  Descobre que algo tá fora do eixo, ou que, você precisa entender o que é esse eixo...
Aos poucos, entendemos o que precisa ser feito, um longo e bonito caminho.
Tomei consciência de que meu eixo é minha alma e que ela, havia se perdido ou se esquecido. E o que vivi, e por agora vivo, é uma necessidade emergencial de resgatar minha própria alma.

E esse resgate custou um sacrifício: assumir verdades que poderiam ser sombrias de início, tanto a mim, quanto às pessoas que convivo. Mas na realidade, essas verdades não são sombrias, pelo contrário! São verdades bonitas que agora vejo que são essências de mim. Verdades que foram esquecidas e que precisavam e precisam se reencontrar.

Ciranda de fitas, se refere a este processo que vivo... Resolvi reassumir minha ciranda, onde sou o mastro e centro, e cada fita (com cada cor e demais peculiaridade), é uma essência de mim... 

Resolvi me permitir a dançar a vida de novo, minha vida e minha Verdade. Decidi parar de deixar as outras partes do eu dançarem desgovernadas, sem música, e , pisotearem sobre minhas essências até então negligenciadas...

Ciranda de fitas, retribui a mim e a muitos outros que lutam diariamente em busca da assunção de verdades de si e para si. Ciranda de fitas, é o nosso sorriso e nossa lágrima dos dias, das lembranças, das escolhas e sensações...

Por agora, despeço-me com um sorriso manso e um desejo estupidamente bobo de que os dias tragam os desafios que merecemos...Por agora, desejo a nós todos, apreciarmos cada fita que temos... Cada fita que iremos descobrir...


"Ciranda de fitas"

É vida que se segue
vida que refaz

Ciranda que canta a canção
de pedras e rosas
Ela se reergue,
retoma ,
e refaz

Recria-se!

É vida que se pede 
é vida que se dá
de si para si
de hoje para hoje
e a canção que se segue é 
em roda,
em rosas

É ciranda de fitas
As cores que giram
ao redor da essência comum
É ciranda de rosas
que murcham e florescem 

que se vão e trazem 
de outros dias
outras vidas
perfumes e pérolas

É vida que se pede
É vida que se vive

É verdade 
girando a ciranda
girando a roda
e cantando a canção

É vida que se faz, 
em roda, em riso infantil
Sorriso sincero
Que mereceu

É vida que se redescobre
É ciranda que se refaz...

g.n.m.