segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Madrugada

Tinha de admitir que sentia medo. Era difícil explicar fosse para quem fosse que sentia um medo angustiante por algo velho que no momento se fazia novo. Engraçado porque ao se despedir de seu pai, ouviu: "Vai fazer seu caminho. Não se preocupe com os outros.'' Era sim uma fala impressionante. Era um convite de liberdade desmedida que a assustava.
 Como poderia dizer que aquilo deixara sua habitualidade e comodidade já reservada e quente por algo incerto a desconsertava de acordo com o princípio ser e estar? Seu pai havia lhe sugerido a idéia de um cheque em branco e ela sentia medo do excesso ou desuso.
 Era grande o poder nas mãos do aprendiz- poder esse que poderia ter efeito corrosivo matando de dentro para fora enquanto a vítima tentasse degustar vida- a vida que ainda desconhecia: de fora para dentro. 
Agora pensava se as pessoas que tanto estimava sabiam que não vivia de fora para dentro. Saberiam elas que sentia uma necessidade emergencial, silenciosamente gritante de viver a largos goles a vida externa? Sentia a garganta seca de seu Deserto...
Quem sabe seu pai havia lhe dado aquele presente colossal e incalculado pra sanar a sua sede de viver. Seria doloroso pensar que foram palavras sem demais intenções que só possuíam a função de preencher despedidas. Pedia a sua intenção de Deus que esse não fosse o motivo.
Diferente das outras vezes, leu A paixão segundo G.H. do começou. Sentia como se pudesse corresponder o solicitado da autora logo no prefácio da obra: sentia a alma demasiadamente formada... E não se importava se o rótulo fosse pretensioso e impreciso. Talvez era isso que Clarice buscava: alguém que desistisse do contorno da compreensão.
O que queria dizer é que leu e via claramente que a terceira perna havia desaparecido e agora poderia correr.
Tinha sim de admitir que sentia medo, e muito. 
Era doloroso olhar perplexa diante do convite em branco da felicidade. Para ser sincera, já sabia do poder antes de qualquer despedida.
O medo culminava, mas ainda assim entrou no ônibus...

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